O que você não conta?
Ele recentemente havia separado da esposa, em seguida de uma tragédia na família. Contou que estava tentando entender ocorrido, o motivo do término e sua urgência. Pensei comigo: estranho terminar assim, do nada, ainda mais quando está em luto. Que parte ele não está contando?, pensei em silêncio.
Seria uma escorregada, uma fugida de casa, a ausência de conversa, desgaste das relações. Não sei. Tudo me pareceu estranho. Mas não aprofundei o assunto porque não sou tão curioso assim e ando cansado demais para dedicar as lamentações alheias.
Não sei por que relatar isso me lembrou daquele brilhante filme Histórias de um casamento, do brilhantismo de Noah Baumbach. Era uma família de artistas que de repente de se viram estranhos um para o outro. Até que em um dado momento, há uma conversa entre o casal porque havia uma criança envolvida, a qual estavam preocupados com o futuro dele. Então Charlie (Adam Driver, passei amar esse ator) pergunta como se inicia a discussão. E num dado momento a discussão atravessa a tela para dentro de casa. Emocionante e desolador, porque foi um diálogo honesto e a ponto de ele conhecer o seu lado primitivo, sem seguida do choro, trazendo de volta a criança interior.
Fins nunca são fáceis, trazem dores pelo corpo, a mente que não cessa, um luto abrupto mesmo. Que acontece do dia para noite. Você chora, retoma a rotina, vai ao supermercado, lembra do pão integral que ele gostava, de repente coloca até no carinho. E minutos depois começa, ali mesmo no supermercado, uma música que ouviram por tanto tempo juntos. Passam pelas ruas onde fizeram planos, lembra-se dos planos para fim de ano. E do dia para a noite isso acaba.
Você tenta meditação, faz leitura de tarot, vai ao Centro Espírita tomar um passé, coloca um filme qualquer como plano de fundo, para encobrir o silêncio. Toma banho, um vinho, um Rivotril — porque sabe que apenas no sono tem paz.
Ao reencontrar uma amiga psicanalista relatei acima o que estava me ocorrendo, a falta de apetite, uma insatisfação… Me cortou no caminho e disse: “Leandro, o que você não está me contando?” Eu ri e disse: sério que vou ter que passar por tudo isso de novo, quem eu sou, o que me levou a estar aqui?
“É a vida, meu amor, sim”.
Quando lancei o livro Oceano de Sentimentos sabia que não era apenas uma metáfora, mas eu sabia que era apenas a ponta do iceberg e que lá nas profundezas tinham tantas coisas.
Medo, insegurança, ausência, angústia, falta; uma criança interior que ainda preservo. As escolhas que eu fiz, as que negligenciei. As insistências que tive, que foram inúmeras, a vontade de ser amado e amar e fazer parte de algo maior, que passa longe de ser uma ilusão. “Agora, sim, indagou ela, em seguida”.
Ok, quando é a próxima sessão, perguntei. “Vamos para casa”, disse ela.
Rimos juntos e eu disse para deixar para outro dia, a fim de preservar na memória o fim do filme, que mesmo divorciados, ela amarra os sapatos dele no meio da rua, anunciando um amor que permanecerá, mas que não faz mais sentido permanecerem juntos.
Compartilhe isso:
- Clique para compartilhar no Twitter(abre em nova janela)
- Clique para compartilhar no Facebook(abre em nova janela)
- Clique para imprimir(abre em nova janela)
- Clique para enviar um link por e-mail para um amigo(abre em nova janela)
- Clique para compartilhar no LinkedIn(abre em nova janela)
- Clique para compartilhar no Reddit(abre em nova janela)
- Clique para compartilhar no Tumblr(abre em nova janela)
- Clique para compartilhar no Pinterest(abre em nova janela)
- Clique para compartilhar no Pocket(abre em nova janela)
- Clique para compartilhar no Telegram(abre em nova janela)
- Clique para compartilhar no WhatsApp(abre em nova janela)
Relacionado
Leandro Salgentelli
Leandro Salgentelli nasceu em Jundiaí (SP), em 25 de setembro de 1994. É jornalista e especialista em Cultura Material e Consumo pela USP. Foi vencedor de dois prêmios nos gêneros crônicas. Atualmente, trabalha com assessoria de Relações Públicas Instituicionais.