A vida pede passagem
A vida pede passagem. Essa consciência me alcançou quando estava no trânsito dia desses, diante de uma chuva que não cessava, já estava atrasado para um compromisso, enviando mensagem para uma amiga, olha vou me atrasar uns 15 minutos. E, enquanto conversava com ela, mais mensagens começaram a chegar, uma notificação no Instagram, um boleto que chegou por e-mail e que não consegui pagar, até que aconteceu em um instante: o sinal fechou e comecei a ouvir a sirene ao fundo, se aproximando cada vez mais, carros subindo em calçadas, até que chegou mais próximo e tive que fazer o mesmo movimento, dar espaço para que a ambulância pudesse passar.
Naquele momento houve um silêncio dentro de mim, os carros tentando voltar à pista, todos tentando se reconectar consigo mesmo, mas não havia o que ser feito, a vida pedia passagem. A ambulância é que era uma emergência.
Então os dias correram na urgência, mas consegue observar que a vida pede passagem mesmo. A vida vai pedir passagem na noite em que for visitar sua avó, e aquele esforço que fez a contragosto, como se estivesse perdendo tempo da sua vida, pode ocorrer de se deparar com a notícia no dia seguinte de que ela morreu durante o sono. A vida vai pedir passagem durante um assalto dentro de um banco, quando sua única alternativa é se render a contingência imposta.
Mas não é só para as coisas ruins que a vida vai pedir passagem, essa emergência pode acontecer na distração – e geralmente é quando se manifesta.
Me lembro de outro dia mesmo estar sentado na sacada de casa, observando o movimento dos meus vizinhos, que andavam para lá e para cá com seus cachorros e filhos. Da minha sacada dá para ter acesso a boa parte do condomínio. Era um domingo por volta das 16 horas. Em um dado momento pude observar uma moça descendo a rua para passear com seu cachorro e um rapaz subindo a rua, também com seu cachorro.
Então, o destino cruzara ambos, porque não é um condomínio pequeno. É quase raro encontrar alguém naquela cidade. Ambos os cachorros quiseram se aproximar – naquele encontro que se dá quando se está distraído. Logo percebi que se tratava de uma emergência. A moça e o rapaz trocaram olhares, um falou com o outro, devia ser alguma coisa sobre os pequenos que os acompanhavam. Riram de algo. Ambos olharam nos olhos fixamente mais uma vez e cada um tomou seu rumo: ela seguiu o percurso descendo a ladeira e ele subiu. E eu os observa a distância.
Eram jovens bonitos. Enquanto subia, pude ver que ele olhou para baixo três vezes. Ela olhou para cima também à procura dele, mas os olhares se desencontraram, era como tivessem perdido o momento o oportuno imposto pela emergência da vida, como se os segundos que se cruzaram era o tempo necessário para perceberem o estupor, e mesmo depois daqueles segundos que ambos não tiveram coragem, tentaram um olhar para o outro, mas não se reencontravam mais. Este é o movimento da vida, que se apresenta na frenesi diária, na emergência dos dias, tentando a todo custo fazer passagem.
Compartilhe isso:
- Clique para compartilhar no Twitter(abre em nova janela)
- Clique para compartilhar no Facebook(abre em nova janela)
- Clique para imprimir(abre em nova janela)
- Clique para enviar um link por e-mail para um amigo(abre em nova janela)
- Clique para compartilhar no LinkedIn(abre em nova janela)
- Clique para compartilhar no Reddit(abre em nova janela)
- Clique para compartilhar no Tumblr(abre em nova janela)
- Clique para compartilhar no Pinterest(abre em nova janela)
- Clique para compartilhar no Pocket(abre em nova janela)
- Clique para compartilhar no Telegram(abre em nova janela)
- Clique para compartilhar no WhatsApp(abre em nova janela)
Relacionado
Leandro Salgentelli
Leandro Salgentelli nasceu em Jundiaí (SP), em 25 de setembro de 1994. É jornalista e especialista em Cultura Material e Consumo pela USP. Foi vencedor de dois prêmios nos gêneros crônicas. Atualmente, trabalha com assessoria de Relações Públicas Instituicionais.