Crônicas

Coisas que assombram

Tenho uma amiga que não gosta da palavra gratidão justamente por remeter a ela essa ideia “good vibes” da vida. Eu já odeio a palavra resiliência, tenha resiliência, amigo, vai passar. Tenho vontade de voar no pescoço de quem me diga essa ofensa. Talvez seja porque durante a pandemia ouvia-se o tempo todo, eu entendia como um eufemismo mesmo, como se acalmar diante daquela tragédia, quando milhares de pessoas morriam por dia, por causa de um vírus, e pessoas dizendo, calma, tenha resiliência.  

A gente se apega mesmo ao fúnebres para dar alento diante de situações difíceis.

Mas ao contrário da minha amiga, tenho um apresso com a palavra gratidão. E não é ser grato por uma coisa ou outra, por um bem material, uma graça alcançada, num sentido que me traga para o centro da vida, como se eu tivesse uma grande importância. Entendo que tudo que me acontece tem uma lógica nas minhas escolhas, seguida pelo meu senso ético e moral.

Me lembro de uma passagem em um dos livros de Lionel Shriver, quando a personagem se dizia assombrada quando sabia de carteiras perdidas eram enviadas aos seus respectivos donos, quando vizinhos regavam as plantas uns dos outros ou quando a moça do caixa lançava um sorriso no rosto junto com o troco no momento em que ela tinha uma máscara apressada.

Em tempos como os nossos, é essa gratidão que me assombra e que tenho apresso. Porque gentileza cada vez mais anda em desuso, assim como a falta de empatia, causada por esse individualismo que nos permeia.

Me assustei outro dia quando uma operadora de celular havia me ligado para perguntar se tinha ocorrido tudo bem com a instalação da internet de casa. Me assombrei quando soube pelos telejornais de uma mulher que tinha perdido o dinheiro junto com a conta de energia e que alguém pagou a conta, intuindo que aquele dinheiro tinha mesmo esse destino. Ou quando alguém bateu no carro parado e, mesmo sem o dono à vista, deixou um bilhete entre o para-brisa, contendo informações do telefone e endereço do causador do dano. Isso me assombra.

Me assombro quando vejo pessoas descobrindo dentro dos relacionamentos o que é ser bem-tratada. Quando descobrem o que é fazer concessões para minimizar os conflitos diários. Me assombro quando alguém consegue ver como realmente sou, despidas de qualquer necessidade de apreso ou vantagem, uma benevolência ou maledicência sem compromisso com o status, das contingências que regem o cotidiano.

Me assombro em filas de supermercado quando me deixam passar na frente porque tenho menos produtos, ou quando me deixam atravessar no trânsito, quando tinha que virar à direita, mas não me dei conta.

Me assombra quem se declara, de quem expõem suas fragilidades, reconhecem suas falhas, de quem pede desculpas. Errei. Isso é da ordem do extraordinário.

E dessas pequenas generosidades, desse toque de sensibilidade, desse senso singelo e íntegro, que se fosse visto corriqueiramente nos deixariam menos assombrados e certamente mais agradecidos.

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Leandro Salgentelli nasceu em Jundiaí (SP), em 25 de setembro de 1994. É jornalista e especialista em Cultura Material e Consumo pela USP. Foi vencedor de dois prêmios nos gêneros crônicas. Atualmente, trabalha com assessoria de Relações Públicas Instituicionais.

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