Crônicas

Sozinho

Era noite. Chovia. Olhei pela janela do meu quarto e observei a água caindo nas plantas, nas mesas e cadeiras da área de lazer do prédio em que moro. Não ouvi vozes, tampouco ouvi carros na avenida tão movimentada. A luz do corredor estava apagada. Olhei nos quarto e não percebi ninguém. Descalço, lentamente, atravessei a sala e fui até a cozinha. Olhei pela veneziana e avistei outros prédios, casas, luzes acesas. Deve ser 22 horas. Depois, ainda sonolento, observei a planta, os livros, às almofadas; então, olhei ao redor do apartamento. O silêncio. E me percebi. E senti que a quietude daquela casa era do tamanho do silêncio que habitava em mim.

Na penumbra daquela noite, enquanto a chuva não cessava do lado de fora, fiquei pensando sobre o momento em que percebemos sozinho. Seria na infância, quando a ingenuidade abre portas para a fantasia de uma realidade alternativa? Seria na adolescência, diante das descobertas do próprio corpo? Ou seria muito antes, no início de tudo, no ventre de nossa mãe? O primeiro contato seria diante do perigo, quando uma voz lá no ínfimo alerta: “Não vá por esse caminho, olhe, tem aquele outro.”?

Então abri um livro que estava por finalizar. Véspera, de Carla Madeira. Decidi abrir um vinho para acompanhar aquela leitura tão vistosa e, enquanto as últimas páginas iam tomando forma, a campainha tocou. Era o síndico trazendo mais livros encomendados. Tenho mais livro do que posso lê-los. Por isso dou-os de presente. Mas dou-os só para quem sabe aproveita-los, para quem devora até a última página… Naquela mesma noite, havia desligado o celular e tinha decidido que sairia de todas as redes sociais. Eu não caibo em lugares dissonantes, em que as palavras se fazem duvidosas e as imagens não condizem com o real. Eu desliguei o celular porque queria saber mais de mim mesmo.  Estava tão confortável aquele reencontro. Toquei as plantas. Limpei suas folhas, que pareciam empoeiradas pela seca de dias atrás. Lavei o resto de louça, mandei o carro para lavar, e de pijama, sai por aí, para ver as ruas, as pessoas, a vida. Era meia-noite.

Estamos todos sozinhos, cada um à sua maneira, tentando atravancar seus limites, correndo atrás dos seus sonhos, vivendo no piloto automático, buscando filhos na escola, atrasando-se para a reunião de condomínio. Há os devotos que veem Cristo como transferência de responsabilidade, se Deus quiser, se Deus permitir, se Deus abençoar. Outros procurando nas coincidências o sentido da vida, apostando no momento certo e na hora certa.

Ao retornar, me refiz diante do espelho, acariciei minha cicatriz no rosto. Lembrei-me da infância. Dos machucados, das travessuras. Do quanto à ingenuidade ainda me alcança. Toquei meus cabelos, que já não são os mesmos. Tomei banho. Deitei e apaguei a luz. Não sei o que aconteceu depois, acho que dormi.

Sozinho estamos todos. Desde a hora em que acordamos até a hora em que vamos dormir. Podemos compartilhar acontecimentos, mas cada decisão passa pelo processo do “será que eu devo?”. E de escolha em escolha, de renúncia em renúncia. Fazemo-nos. Sozinhos. Até o fim.

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Leandro Salgentelli nasceu em Jundiaí (SP), em 25 de setembro de 1994. É jornalista e especialista em Cultura Material e Consumo pela USP. Foi vencedor de dois prêmios nos gêneros crônicas. Atualmente, trabalha com assessoria de Relações Públicas Instituicionais.

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