O cobertor marrom
Foi no inverno passado que pedi a minha mãe seu cobertor marrom. De uma generosidade tamanha, o tirou do fundo do armário e me entregou. Aquele coberto carregado de pelo, com um tecido já cansado pela passagem do tempo, tinha uma história.
Ela contou que ganhou de presente de casamento, assim como os pratos, os copos e os talheres que a acompanha até hoje. O cobertor, desde o dia em que chegou aos braços dos meus pais, tem aproximadamente 40 anos. Metade de uma vida. Quanta coisa já presenciou…
Talvez estivesse presente quando meus pais experimentavam as coisas boas que todo início de casamento traz, quando tiveram um espanto ao saber que estavam esperando o primeiro filho. Possivelmente o coberto tenha sido um alento nas contrações daquele inverno em que meu irmão nasceu.
O cobertor marrom presenciou as insônias, as preocupações com as contas. Decerto tenha sido abrigo após as discussões quando um corpo faltava à cama. O cobertor viu tudo, a insegurança do meu pai no primeiro emprego, o desejo da minha mãe em ter sua casa própria, as fantasias que chegavam quando um vazio não era preenchido.
O cobertor marrom sentiu meus pés sujos quando pulava na cama ainda na infância, quando acolheu a mim e aos meus pais em dias chuvosos, numa época em que não me faltava medo do escuro.
O cobertor marrom foi quem abraçou minha mãe nas noites em claro quando se divorciou do meu pai e que, permaneceu ali, por tanto tempo, trazendo conforto quando parecia que a angústia saltaria a boca.
O cobertor marrom abraçou estranho quando dormia em casa. Acolheu meus primos, tias e avó. Viu meu amadurecimento, enxugou minhas lagrimas por períodos tão logos. Mas também viu as minhas alegrias assistindo a um filme, estava presente nas minhas gargalhadas nas madrugadas tão curtas.
Assentiu, também, quando precisava ser lavado, e seu cheiro de Confort era o que realmente fazia a gente respirar fundo, numa alegria espontânea, antes de pegar no sono.
O cobertor marrom foi meu companheiro de viagem quando embarcava num livro. Era ele que estava comigo quando um texto me tomava por inteiro. Quando as palavras me nocauteavam de maneira que me deixa reflexivo.
Das vezes em que a ansiedade me alcançava, era ele que estava a meu lado.
Hoje ele retorna para os braços dos meus pais, e depois de tantos anos, penso no como engraçado a vida é: o mundo dá voltas, fecham-se os ciclos, encerram-se os capítulos, e quando a gente acha que não há mais nada acontecendo, e catalogamos como o “fim”, volta-se ao início. É poético. O cobertor marrom, agora, abraça ambos.
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Leandro Salgentelli
Leandro Salgentelli nasceu em Jundiaí (SP), em 25 de setembro de 1994. É jornalista e especialista em Cultura Material e Consumo pela USP. Foi vencedor de dois prêmios nos gêneros crônicas. Atualmente, trabalha com assessoria de Relações Públicas Instituicionais.