Vencidos pelo cansaço
Uma das vantagens de fazer análise é o processo de narrar-se. Não é tarefa fácil falar de si mesmo, é como se ficássemos despidos diante de uma multidão de estranhos. E tem coisa mais estranha que nossos fantasmas internos? Ao mesmo tempo que pode ser libertador é, também, assombroso.
Quando narro minhas encrencas nunca volto para casa da mesma forma que entrei no consultório. Volto avariado, com minha carcaça ambulante, que tenta irrefutavelmente juntar os quebra-cabeças da infância.
A pandemia tem nos sugeridos que reavaliemos muitas coisas, desde nossas relações de parentescos, até aqueles projetos que estavam adormecidos dentro de nós. Alguns tentam tocar a vida após a perda brusca, outros tentam emprego quando o céu parece ter virado as costas.
Estamos todos, cada um à sua maneira, vencidos pelo cansaço.
Foi isso que disse outro dia a psicóloga: o quanto estamos cansados. Cansados de tentar corresponder expectativas dos outros, cansados de brigas tolas, de confusão sem necessidade, de fofocas, maldadezinhas corriqueiras.
Tem sido natural diante dessas malesas virar as costas e tentar construir uma narrativa em um cotidiano mais simplificado. Não me apetece mais implicâncias, estar perto dos ranzinzas que só tem a questionar. Não serei eu quem vai tentar dialogar com os ignorantes com empáfia, quando ao soltar alguma coisa alusiva ao seu passado mesquinho. “Porque no meu tempo…” Tem sido frequente pedir licença e não voltar.
Outro dia ouvi da talentosíssima Rita Lee “cada vez mais me importo menos”, uma antítese que cada vez mais atingem àqueles que alcançam um grau de maturidade, que não está disposto a negociar a felicidade e a solidão com ninguém.
É comum essa percepção chegar quando se está mais próximo do fim do que do começo, na virgindade existencial, quando ainda há que dar satisfação pelo suspiro. Mas se você chegou a sua independência, não se preocupa em almoçar sozinho, a pegar um cinema sozinho, a viajar sozinho, a estar sozinho, é natural ficar cansado desse estardalhaço do dia a dia.
Vencidos pelo cansaço é também a consciência de querer por perto só aqueles que nos faz bem, da qual não precisa estar atento o tempo todo sobre si mesmo a fim de não tocar no que mais incomoda no outro. Desconforto há de ter, em algum momento, mas que não se torna servilismo humilhante, que geralmente nos faz sentir inadequado.
Vencidos pelo cansaço talvez seja aceitação das imperfeições, das oscilações de humores, do estado de espírito. Aceita que não se pode mudar o mundo, mas que pode, sim, ressignificar o epicentro, o micro da existência, as pequenas atitudes que geralmente tem efeito extraordinário.
Amadurecer, se dar vencido pelo cansaço, é reconhecer essas “chatices” que talvez alguém diga que seja. Mas lá no ínfimo, naquela parte em que só a gente conhece, sabe-se que não é chatice coisíssima nenhuma.
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Leandro Salgentelli
Leandro Salgentelli nasceu em Jundiaí (SP), em 25 de setembro de 1994. É jornalista e especialista em Cultura Material e Consumo pela USP. Foi vencedor de dois prêmios nos gêneros crônicas. Atualmente, trabalha com assessoria de Relações Públicas Instituicionais.