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Amores remotos

Tenho pensado muito sobre o significado de amor num mundo tão pulverizado. A sociedade se tornou individualista a um ponto de terminar o relacionamento pelo WhatsApp, a bloquear uns aos outros como se não houvesse alguém do outro lado da tela. Tal é a dificuldade de expressar o que sente – quando sente porque, convenhamos, mesmo que seja um rapidíssimo affair não merece levar a migalha do que sentiu ao isolamento –, ora, para que o esforço se posso simplesmente bloquear alguém?

Tudo isso me soa tão estranho porque eu sempre tive o amor como longevidade. Desde que me apaixonei pela primeira vez, aos quinze anos, quando pude ter contato com esse fenômeno incompreensível sentimento, percebi que se apaixonar, amar ou gostar muito de alguém nos coloca em contato com a outra versão de nós mesmos que nunca havia se apresentado. A gente se sente inadequado como se não soubéssemos quem somos. É quando nasce também o sentimento de liberdade, o medo e a insegurança. Toda estreia causa algum tipo de desconforto. Tal é a graça de viver: a cada experiência, tem-se uma visão ampliada de si mesmo.

O curioso é que tenho lido muito sobre o assunto, mas o que me custa a acreditar é que essa visão de experiência que se atingia era um modelo de se relacionar onde ambas as partes se doavam. Amar era entrega. Era contentamento.

No entanto, a tecnologia mudou a forma como nos relacionamos. Agora, a gente procura se reafirmar em cada relação. Descobri isso ao ler o livro “Amor líquido”, de Zygmunt Bauman.

O sociólogo explica que não se pode aprender amar como também se pode aprender a morrer, isto é, relaciona o amar com a morte. Que a cada relacionamento estamos fadados ao desconhecido. O estarrecedor não é refletir sobre isso, mas, sim, constatar que vivemos mesmo numa era em que os amores deixaram de ser sólidos e tornaram-se líquidos.

Olhe ao redor, o que aconteceu com aquele príncipe encantado com quem você estava conversando semana passada? Não soa esquisito o como as pessoas desconectam uma das outras? O como as pessoas conseguem apagar uma as outras?

As relações se tornaram escorregadias, não tenho estudos que comprovem, são apenas observações minhas, e o que consegui observar nesse mundo desastroso da era pós-moderna, é que amar se tornou um verbo em total desuso. Em desuso do ponto de vista histórico, em desuso do ponto de vista da moral, em desuso do ponto de vista da empatia. Amar teve falência múltipla dos órgãos — intuo que seja por causa da hipocrisia que também sempre esteve atrelado a esse verbo.

Até os livros atualmente tem conjugado o verbo amar de uma maneira voyeur. O trágico Shakespeare teve seus cinco minutos de fama, mas aposto que seu romantismo ultraidealizado não cabe mais no mundo moderno. Gustave Flaubert, ao lançar Madame Bovary, curiosamente na era realista, em 1857, tentava denunciar esse romantismo tão aclamado. O livro é um clássico por diversos motivos, principalmente por denunciar o comportamento humano como o adúltero, a falsidade, o narcisismo do homem. Enfim, por escancarar as fantasias de uma jovem ao ter contato com a realidade numa sociedade que já não sustentava o amor e sua permanência.

 Mas os tempos são outros, troca-se de parceiros como troca-se de roupa. Como diria o termo tão frívolo: a fila anda. E tem andado num ritmo tão frenético que tem me causado aversão.

O que me deixa muito preocupado, porque à medida que os aplicativos como o Tinder e o Happn tornam-se as relações mais acessíveis, mais acessível fica também para desconectar. Ambos os aplicativos se assemelham a uma loja virtual. Basta que o atrativo não corresponda com nossos gostos para deslizar os dedos ou fazer com que não cruze o nosso caminho novamente.

Saudade eu tenho é dos amores remotos. Quando nos importávamos uns com os outros. Quando as relações humanas tinham mais consistências. Quando as pessoas se lembravam dos nossos nomes no dia seguinte. Quando uma ligação tinha seu valor.

A sociedade consumista da era pós-moderna não percebe que as relações esporádicas têm seus cinco minutos de prazer, e não percebe que tudo aquilo que é momentâneo é álibi para o vazio, e não percebe que os bloqueios, os silêncios interrogativos, os términos virtuais não são sinônimo de evolução, mas, sim, de empobrecimento de empatia e crueza de moralidade.

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Leandro Salgentelli nasceu em Jundiaí (SP), em 25 de setembro de 1994. É jornalista e especialista em Cultura Material e Consumo pela USP. Foi vencedor de dois prêmios nos gêneros crônicas. Atualmente, trabalha com assessoria de Relações Públicas Instituicionais.

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