Crônicas

Ausências

Desde muito cedo precisei lidar com o vazio. Papai foi embora de casa, mamãe tinha que trabalhar para que não passássemos fome. Tivemos uma prima que ajudava como babá, mas seu trabalho foi oportuno até certo ponto. Depois disso, passei a cuidar do meu irmão mais novo, de mim, da casa e do que nos cercavam. Numa estrutura patriarcal, minha mãe era o homem da casa e a mim coube o papel de ser a mulher que cuidava dos filhos.

Mas esse não é o ponto, diga-se, ou não seria quem sou. Responsável, alguém que consegue se bastar, alguém que mesmo com a infância tirada, soube de alguma maneira tirar a graça da coisa.

Eu me lembro de um episódio quando ainda muito pequeno. Meus pais estavam se separando e, para acertar os papeis, minha mãe decidiu me deixar com minha avó por um tempo. Eu me lembro da roupa que ela estava: era uma calça preta e blusa vermelha. Eu devia ter uns cinco anos e era muito apegado a ela, era sua sombra. E nesse dia, sem deixar pistas, me deixou com minha avó. Me deu um brinquedo, e quando percebi um silêncio fora do normal, fui identificar o que tinha acontecido. Lembro-me exatamente da cena: ela entrando dentro do carro apressada e fugindo sabe-se lá para onde. A sensação foi de abandono.

Anos mais tarde conversamos a respeito desse episódio, trabalhei em terapia e seguimos a vida em frente, conduzindo o eufemismo “está tudo bem, passou”.

Mas não passa. São cicatrizes que ficam e o jeito mais inteligente de ameniza-lo é buscando ajuda, apostando na arte, na música, no cinema, nas relações.

Toquei nesse assunto porque muito se fala em amor próprio, em inteligência emocional, em superação da vida, enfim, acho válido toda a tentativa, no entanto, seria tão mais prudente se aceitássemos aquilo que nos coube por uma contingência que é da vida…

Todos nós tivemos que lidar com ausência em algum momento, desde o mais rico ao mais pobre. A ausência é universal, impossível escapa-la. Você pode ter sido a criança mais bem tratada. Até mesmo a mãe mais preocupada com o bem-estar do seu bebê. Mas o vazio vai se implantar em algum momento, seja pelo excesso de proteção ou a falta dele.

A ausência, o vazio, a angústia, dê o nome que melhor lhe aprouver, é inerente a qualquer ser humano. E talvez seja por isso tanto se fala e tanto se tenta explicar. E é desse gatilho que vai surgindo a carência, a dependência, a insegurança que se leva para os relacionamentos e se passa adiante. E, quando vemos, a coisa tomou um desdobramento irreparável.

Não creio ser uma visão pessimista, mas há sintomas que não se curam. O que nos cabe, e talvez seja o mais difícil, é saber aceitar essa falta. Em que momento isso acontece, aos 20, aos 30?

Há quem passa pela vida inteira e não consegue absorver a ausência.

A impressão que eu tenho é que externizar ajuda, como agora, em uma folha em branco preenchida. Espero que a alcance.

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Leandro Salgentelli nasceu em Jundiaí (SP), em 25 de setembro de 1994. É jornalista e especialista em Cultura Material e Consumo pela USP. Foi vencedor de dois prêmios nos gêneros crônicas. Atualmente, trabalha com assessoria de Relações Públicas Instituicionais.

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