Satisfazendo-se com café
Foi fazendo café, dia desses, que dei conta que me tornei um homem-feito. Olhando pela janela da cozinha do prédio em que moro, que dá acesso a contemplação de uma parte da cidade, tive um estado de epifania: eu realmente havia crescido. Enquanto o aroma do café tomava espaço pela cozinha, senti uma alegria genuína, o contrário de orgulho, como se espera.
O homem-feito, como dizia minha avó, que já não está mais entre nós que Deus o tenha, é aquele cara que banca sua família, tem um emprego mediano, que assiste a jornais e vai dormir mais cedo para trazer o pão de cada dia.
Claro que o tempo mudou e sem perceber fui agregando além do que me foi ensinado. Ninguém me impediu de implementar outras necessidades, de mudar alguns conceitos pré-estabelecidos, como não preferir casar, não ter filhos, e ainda sim viver num cotidiano descomplicado.
O curioso é que não imaginava que ao crescer teria um passaporte, uma profissão, um endereço, que me tornaria jornalista, que escrever fosse se tornar um ofício. Que bancaria minhas contas, meu teto e que, com o meu dinheiro, pudesse comprar café — é a terceira vez que ele aparece como uma lâmpada acessa quando se acredita que tudo está escuro.
Olhando pela janela pude perceber que tinha um passado, responsável por esse olhar que tenho hoje. O tempo avança mesmo — Simone de Beauvoir estava certa — e é irrealizável.
Pela janela pude enxergar outras casas, outras famílias, outras pessoas, outras crianças, que em algum momento farão essa transição de serem responsáveis por si mesmas. Ali estão outras culturas, hábitos, desejos, sonhos. Alguém aí ainda sonha?
Nesse mundo de arranha-céus em que ninguém percebe ninguém, cada um tentando atravancar o tempo, realizar-se se tornou contraproducente. A ânsia é sempre demasiada e a ansiedade tem corroído as vísceras, diria eu, que observo à distância com uma xícara, você sabe…
Mas houve um tempo em que acreditava que todos estavam no mesmo barco, que as pessoas se alegravam por pequenas bobagens, que o suspiro fosse intenso — ingenuidade minha, eu sei, cai na real, como diria o menino de rua que encontrei outro dia.
Cai na real também fazendo café. Foi ali que percebi que sou responsável por tudo o que me acontece, das coisas boas que a vida traz até as desagradáveis, que nos impedem o sono. Banco minhas opiniões, nascem às dúvidas, logo em seguida as respondo, mas depois nascem tantas outras. Ao mesmo tempo em que avançar é uma ventura é também um desafio.
É provável que não se encontre por aí alguém se realizando ao fazer café, degustando sua própria companhia num domingo ensolarado e silencioso, que geralmente é um convite ao recolhimento.
Se dá um frio na barriga ter essa dimensão toda? É evidente que sim, no entanto, quando esse lampejo aparece apavorado geralmente troco o café pelo vinho. Nesse momento chega à compreensão de que cresci mesmo.
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Leandro Salgentelli
Leandro Salgentelli nasceu em Jundiaí (SP), em 25 de setembro de 1994. É jornalista e especialista em Cultura Material e Consumo pela USP. Foi vencedor de dois prêmios nos gêneros crônicas. Atualmente, trabalha com assessoria de Relações Públicas Instituicionais.