Crônicas

Automoção do atendimento

“Você viu o que acabou de fazer?” — acusou uma amiga assim que sentamos à mesa. Rapidamente, tentando buscar no inconsciente algum gatilho que me lembrasse da falha, e num impulso respondi: não, o que eu fiz?

Nossa amizade transcende a cada encontro porque temos uma liberdade descomunal. A cada conversa, nunca voltamos para casa o mesmo. As reflexões que colocamos à mesa, literalmente, me remete aos diálogos com o psicanalista.

Ocorreu que estávamos no Shopping e por infortúnio decidimos jantar. Fomos ao restaurante, e tem sido frequente os estabelecimentos colocarem atendimento automatizado, a qual não depende de interação humana. Você faz seu pedido no computador e automaticamente seu pedido chega ao chefe da cozinha.

Nesse dia havia uma garota e assim que cheguei ao restaurante foi logo me mostrando o cardápio, apresentando o prato principal da casa; eu havia dito que não era necessário, que já tinha começado a fazer o pedido no Totem. Ela insistiu mais um pouco eu apenas agradeci.

Corta.

Uma outra amiga comentou comigo dia desses que os aplicativos do Uber agora têm um questionário, a qual você pode colocar se prefere os vidros abertos ou ar condicionado, se prefere interagir com o motorista ou não. É aquela velha máxima: tudo para a satisfação do cliente.

“Você viu o que fez?”, aquela acusação quase me fez levantar da mesa e pedir desculpas para a moça do atendimento, ainda mais por saber que nem tinha olhado nos olhos dela, que estava apenas fazendo seu trabalho. (Se um dia esse texto chegar a você, minhas sinceras desculpas.)

É isso que o capitalismo faz. Podemos justificar que é a praticidade, que para os donos dos estabelecimentos é menos custos, menor índice de erro no pedido, mais lucro, mais vantagem. Ambos ganham: você pela praticidade e o proprietário o seu dinheiro.

Mas a verdade é que isso me assunta. Porque temos evitado o outro com tanto afinco, que se tornou a nova normalidade. Tudo pela autossuficiência. Nunca, como hoje, essa palavra esteve tão em alta.

Mas ao evitar o outro, evita-se em saber a sugestão do prato do dia, a conversa rápida de como o ambiente está movimentado, a espontaneidade daquele diálogo. Pode ser que não a veja mais, que da próxima vez que retornar ao estabelecimento essa função nem exista. E sempre é bom lembrar: às vezes o que as pessoas precisam é apenas uma gentileza.

A praticidade nos leva a uma blindagem tamanha que a ideia de ser “a nova normalidade” se torna vertiginoso. No fundo, no fundo, quem perde somos todos nós.

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Leandro Salgentelli nasceu em Jundiaí (SP), em 25 de setembro de 1994. É jornalista e especialista em Cultura Material e Consumo pela USP. Foi vencedor de dois prêmios nos gêneros crônicas. Atualmente, trabalha com assessoria de Relações Públicas Instituicionais.

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