Gangorra emocional
Eu estava numa festa de aniversário quando uma moça se aproximou e começou a verbalizar sobre seu relacionamento com o marido. Contou que no início havia muitas brigas, xingamentos de ambas as partes, mas tudo piorou quando se casaram. Em seis meses, foi o suficiente para que tudo desandasse novamente. Ela contou das artimanhas e facilidade de ignorá-la. Se ela estava em um ambiente, ele procurava outro, a ponto de torna-la invisível. E nos momentos em que verbalizava, questionava a maneira como cozinhava, como lavava a roupa, como se vestia, colocando-a num limbo, com uma frieza que beira o absurdo.
Chorando de soluçar, quase perdendo o fôlego, contou que recortou todas as fotos que tinham juntos na estante e a mandou embora da casa, que também é dela.
Ao passo em que narrava esses acontecimentos todos, não fiquei pensando sobre o quão perverso é, porque isso não é novidade, mas, sim, sobre a maneira como se absorve esse tipo de afrontamento.
Em que momento durante o andar da vida pode-se falar com o filho sobre os limites do próprio corpo? Ela desconhecia esses limites. O que certamente sua mãe também desconhecia.
No momento em que verbalizei que se tratava de abuso, de imediato negou, e chorou mais um pouco porque o amava. Busquei água para tentar acalmá-la, mas logo saí daquele ambiente, de perto daquela situação toda que me corria por dentro. Saí angustiado porque não consegui traduzir para aquela moça que estava sendo abusada emocionalmente. Para ela, abuso era só físico. Lembro-me de dizer “tente ficar bem” e fui embora.
Pode parecer estranho, mas ainda, sim, há uma camada significativa da sociedade que não tem compreensão sobre a subjetividade das palavras, das intenções do outro, sobre o que se faz com as atitudes violentas que o outro provoca. E quando percebe, acredita que vai passar, que vai melhorar, culpando-se por uma negligência que não é sua. E não passa. Tende-se a cada vez mais piorar.
Por que o abusador quer saber das suas vulnerabilidades, tudo aquilo que a causa medo, que desencadeie as inseguranças, na verdade, ele a estuda para usar cada fagulha de ferida contra você. Em cada humilhação, acredita ganhar vantagem. A cada chantagem, acredita estar no controle da situação. A cada constrangimento, a induz ao erro. E depois de tudo isso, ele vai te seduzir novamente. Quando você estiver completamente e inteiramente nas mãos dele, a ponto de afastar dos amigos, da família, é o momento em que vai saber que tem você nas mãos. E é bem provável que você continue mudando seu jeito de ser para agradá-lo, a ponto de perder a identidade.
E, aos despersonificar toda sua inteireza de ser, minando todas as suas características pessoais, é o momento que começará a ser mais cruel. Enquanto que você vai passar a não entender o que está acontecendo, onde está errando. E tudo aquilo que faz a sentir bem e segura, ele vai passar a criticar, depreciando sua autoestima, como se você fosse uma mulher inadequada. E cada camada que ele alcança, mais ele afasta você de si mesma.
Ele vai manipular todos os seus sentimentos, e no momento em que sua alegria de viver acabar, você será descartada. O curioso é que, depois de tudo isso, você ainda vai continuar se perguntando onde foi que errou, onde foi parar aquele homem que fez de tudo no início do relacionamento.
É uma gangorra emocional cheia de ciclos, que só terá fim quando tivermos uma sociedade capaz de ter responsabilidade afetiva, só que para isso, é preciso descobrir, também, os limites do próprio corpo.
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Leandro Salgentelli
Leandro Salgentelli nasceu em Jundiaí (SP), em 25 de setembro de 1994. É jornalista e especialista em Cultura Material e Consumo pela USP. Foi vencedor de dois prêmios nos gêneros crônicas. Atualmente, trabalha com assessoria de Relações Públicas Instituicionais.