
Trem desgovernado e a vida lá fora
Tudo começou muito rápido e terminou como se tivesse atrasado para algum compromisso, fica bem, beijos, até mais; foi assim, na derradeira antes do tropeço final. O que é estranho, porque aparentemente parecíamos estar indo bem. Riamos quase que diariamente, conversávamos sobre amenidades, assistíamos à filmes não tão bons, tomávamos café em seguida da escovada de dentes, duas coisas feitas quase que simultaneamente. E, emendando um acontecimento no outro, enquanto tentava encontrar a lógica dessa comoção desenfreada em um jantar desses inadiáveis, oi, tudo bem, quanto tempo mesmo; o que será que houve com a gente?
Ainda estava naquela adrenalina de fazer as malas para a viagem marcada, camisa, calça, sapato, não esquece o filtro solar e a vitamina C, que cabeça essa minha; um sentimento tumultuava outro, por que será que ele se comportou daquela maneira, não entendi aquele silêncio durante o almoço, será que falei algo que não devia, por que aquele olhar interrogativo?, será que vou perder o voo, meu Deus, e esse trânsito.
E na medida que a agitação se metia na rotina, deixando lacunas de conversas inconclusivas devido ao atraso para o trabalho, ou nos dias em que o buscava no fim do expediente, no tempo em que comia qualquer coisa enquanto eu colocava roupa para secar, ouvindo falar sobre a arte, sobre a época do teatro, o como o contato com personagens fazia se sentir inteiro — por dentro tudo se tumultuava; amanhã preciso ir ao supermercado, não posso esquecer de comprar café, o que tem só dá para amanhã. Eu preciso dormir.
E quando acordei o que houve entre nós tinha acabado.
É como se a movimentação toda provocasse em mim um trem desgovernado, que tentava, após o ocorrido, a todo custo, parar, mas não conseguia.
Não foi uma daquelas paixões que nos tira o tino, que faz com que os nossos dias fiquem nublados, em que o vislumbre desaparece, houve apenas um incômodo, uma ausência que tentava entender o que aconteceu e o que mudou.
Voltando à normalidade, no meu ritmo, após a freada há tempo, reconheço a necessidade do encantamento, da admiração espontânea, aquela admiração pela personalidade travessa ou benevolente, o que certamente não ocorreu.
Fomos ultrajantes, passando por cima do processo natural, como se o amanhã não existisse. Fomos amarrando um acontecimento no outro, vivendo um dia após outro, sem mencionar os tropeços nesse percurso. Era uma aventura a qual cada um tinha um limite, que foi interrompido pela falta de compreensão, desse tato natural em que as relações devem acontecer.
Tudo isso aconteceu durante a recuperação de fôlego de um trem desgovernado, enquanto a vida seguia, normalmente, seu curso lá fora.
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Leandro Salgentelli
Leandro Salgentelli nasceu em Jundiaí (SP), em 25 de setembro de 1994. É jornalista e especialista em Cultura Material e Consumo pela USP. Foi vencedor de dois prêmios nos gêneros crônicas. Atualmente, trabalha com assessoria de Relações Públicas Instituicionais.

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